“No recinto impregnado de vinagre em que dissecamos aquele morto, o qual não era mais o filho ou o amigo, mas apenas um belo exemplar da máquina humana, experimentei pela primeira vez a sensação de que a mecânica, de um lado, e a Grande Arte, de outro, tratam apenas de aplicar ao estudo do universo as verdades que nos ensinam nossos corpos, nos quais se repete a estrutura do Todo. Não seria bastante toda uma vida para cotejar um com o outro este mundo em que estamos e este mundo que somos. Os pulmões eram o fole que reanima a brasa; o pênis, uma arma de arremesso; o sangue nos meandros do corpo era a água circulante das canaletas de um jardim oriental; o coração, conforme se adotasse esta ou aquela teoria, era a bomba ou o braseiro; o cérebro, o alambique em que se destila uma alma…” Marguerite Yourcenar (1903–1987) A Obra em Negro De verdade , De mundo , De vida , De morte
“Em Paris, passeando de braço dado com uma noiva casual num outono tardio, quase não conseguia conceber felicidade mais pura que daquelas tardes douradas, com cheiro rústico das castanhas nos braseiros, os acordões sentimentais, os namorados insaciáveis que não acabavam de se beijar nunca na calçada dos cafés, mas mesmo assim dizia a si mesmo com a mão no coração que não se dispunha a trocar por tudo aquilo um único instante do seu Caribe em abril. Era ainda jovem demais para saber que a memória do coração elimina as más lembranças e enaltece as boas e que graça a esse artifício conseguimos suportar o passado. Mas quando voltou a ver do convés do navio o promontório branco do bairro colonial, os urubus imóveis nos telhados, a roupa dos pobres estendida a secar nas sacadas, compreendeu até que ponto tinha sido uma vítima fácil das burlas caritativas da saudade.” Gabriel García Márquez livro El amor en los tiempos del cólera Love in the Time of Cholera Coração , Memória , De felicidade , Café