Florestan Fernandes:
Ser
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Florestan Fernandes:
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“A minha socialização prebéia poderia ser mais rica. Porém, o submundo dentro do qual circulava, de engraxates, entregadores de carne, aprendizes de barbeiro ou de alfaiates, balconistas de padarias, copeiros, garçons, ajudantes de cozinheiro, etc., fechava-se dentro de um círculo pobre. Os seus componentes não acompanhavam com ardor os conflitos operários e com freqüência formavam a própria opinião através das pessoas a que serviam ou de jornais sensacionalistas”.”
“Tudo isso indica que, no inicio da década de 50, o período de formação chegava ao fim e, simultaneamente, revelava os seus frutos maduros. Eu já estava terminando a redação de A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá e dispunha de condições não só para colaborar com Bastide em uma pesquisa tão complexa como a que fizemos sobre o negro em São Paulo, mas para ser encarregado do planejamento da mesma e da redação do projeto de investigação. Estávamos em uma nova era, para mim, e as minhas responsabilidades sofriam uma transformação rápida, quantitativa e qualitativa. Graças à transferência para a Cadeira de Sociologia I (oficializada em 1952) e, em seguida, ao contrato como professor em substituição a Roger Bastide, eu me via diante da oportunidade de contar com uma posição institucional para pôr em prática as concepções que formara a respeito do ensino da Sociologia e da investigação sociológica. Converti essa cadeira (como se verá adiante) em um pião para atingir fins que são inacessíveis ao professor e ao investigador isolados”.”
“… a minha formação acadêmica superpôs-se a uma formação humana que ela não conseguiu destorcer nem esterilizar. Portanto, ainda que isso pareça pouco ortodoxo e antiintelectualista, afirmo que iniciei a minha aprendizagem <> aos seis anos, quando precisei ganhar a vida como se fosse um adulto e penetrei, pelas vias da experiência concreta, no conhecimento do que é a convivência humana e a sociedade, em uma cidade na qual não prevalecia a <>, mas a <>, pela qual o homem se alimentava do homem, do mesmo modo que o tubarão come a sardinha ou o gavião devora os animais de pequeno porte. A criança estava perdida neste mundo hostil e tinha de voltar-se para dentro de si mesma para procurar nas <> e nos <> os meios de autodefesa para a sobrevivência. Eu não estava sozinho. Havia a minha mãe. Porém a soma de duas fraquezas não compõe uma força. Éramos varridos pela << tempestade da vida>> e o que nos salvou foi o nosso orgulho selvagem, que deitava raízes na concepção agreste do mundo rústico, imperante nas pequenas aldeias do norte de Portugal, onde as pessoas se mediam com o lobo e se defendiam a pau do animal ou de outro ser humano”.”
“Pretendia fazer, não me lembro por que – se é que cheguei a saber – o curso de Engenharia Química, na Politécnica. Contudo, teria de ser aluno de tempo integral, o que me era impossível, pois tinha de manter a casa. A escolha das Ciências Sócias e Políticas correu por conta das oportunidades que coincidiam com os meus interesses intelectuais mais profundos. No caso, a <> quase não contou. Queria ser professor e poderia atingir esse objetivo através de vários cursos. O meu vago socialismo levou-me a pensar que poderia conciliar as duas coisas, a necessidade de ter uma profissão e o anseio reformista de <>, cuja natureza eu não conhecia bem, mas me impulsionava na escolha das alternativas. Decidi-me pela secção de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Esta herdava um <>, em processo de desabrochamento intelectual e da descoberta de si mesmo. Seguindo a ótica atual, alguém poderia escrever: o lumpen-proletariado chega à Universidade de São Paulo. Todavia não era o lumpen-proletariado que chegava lá; era eu, o filho de uma ex-lavadeira, que não diria para a cidade de São Paulo<>, como um célebre personagem de Balzac. Eu levava comigo intenções puras, o ardor de aprender e, quem sabe, de tornar-me um professor de escola secundária”.”
“A cultura dos meus mestres estrangeiros me intimidava. Eu pensava que jamais conseguiria igualá-los. O padrão era demasiado alto para nossas potencialidades provincianas – para que o ambiente poderia suportar – e especialmente para mim, com a minha precária bagagem intelectual e as dificuldades materiais com que me defrontava, as quais roubavam grande parte do meu tempo e das minhas energias do que gostaria de fazer. Contudo, como me propunha a ser um professor de nível médio, as frustrações e os obstáculos não interferiam no meu rendimento possível. O desafio era trabalhado psicologicamente e, na verdade, reduzido à sua expressão mais simples: as exigências diretas das aulas, das provas e dos trabalhos de aproveitamento. Com isso, empobrecia o meu horizonte intelectual e humano. No entanto, não poderia sobrepujar-me e resolver os meus problemas concretos sem essa redução simplificadora, que se corrigiu por si própria, na medida em que progredi como estudante e adquiri uma nova estatura psicológica. Em suma, o Vicente que eu fora estava finalmente morrendo e nascia em seu lugar, de forma assustadora para mim, o Florestan que eu iria ser”.”
“Portanto, a instituição – digamos: a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, a Universidade de São Paulo, a Escola Livre de Sociologia e Política – não deve ser vista em si por si mesma, isoladamente. Ela expunha o intelectual em formação a uma segregação espacial e a um isolamento cultural, que eram irremediáveis mas também eram produtivos; porém ela interagia com a sociedade. A cidade a provocava de várias maneiras e era para a cidade, em última análise, que ela funcionava, se não a cidade como um todo, pelo menos os centros onde as forças sociais de conservantismo, de reforma e de revolução operavam com maior intensidade ou com alguma virulência”.”