“Nas paredes da estação de trabalho viam-se três orifícios. À direita do ditógrafo, um pequeno tubo pneumático para as mensagens escritas; à esquerda, um tubo de maior calibre para os jornais; e na parede lateral, ao alcance da mão de Winston, uma grande abertura retangular, protegida por uma grade de arame. Esta última destinava-se aos papéis a descartar. Aberturas similares se espalhavam aos milhares, ou dezenas de milhares, por todo o edifício, fazendo-se presentes não apenas em cada sala mas também, a pequenos intervalos, em todos os corredores. Por algum motivo, tinham recebido o apelido de buraco da memória. Quando a pessoa sabia que determinado documento precisava ser destruído, ou mesmo quando topava com um pedaço qualquer de papel usado, levantava automaticamente a tampa do buraco da memória mais próximo e o jogava ali dentro, e então o papel ia torvelinhando numa corrente de ar quente até cair numa das fornalhas descomunais que permaneciam ocultas nos recessos do edifício.” George Orwell (1903–1950) escritor e jornalista britânico 1984 Memória , De pessoas , Calibre
“A moral do êxtase é contrária à do processo; debaixo da sua protecção toda a gente faz o que quer; já cada qual pode chuchar no dedo à vontade, desde a mais tenra infância até ao fim do liceu, e trata-se de uma liberdade a que ninguém estará disposto a renunciar; olhemos à nossa volta no metro; cada um entre todos, sentado, tem o dedo num dos orifícios do rosto; no ouvido, na boca, no nariz; nenhum se sente visto pelos outros e cada um pensa em escrever um livro em que possa dizer o seu inimitável e único eu que escarafuncha o nariz; ninguém ouve ninguém, toda a gente escreve e todos e cada um escrevem como se dança o rock: sozinho, para si mesmo, concentrado em si, e contudo fazendo os mesmos movimentos que os outros todos fazem.” Milan Kundera (1929–2023) Testaments Betrayed: An Essay in Nine Parts De livros , Dança , Liberdade , Infância
“Um rapaz franzino de cabelo arruivado, quase nu e a agarrar com força um arco, rastejava vagarosamente na direcção de um pequeno veado.Puxou de uma flecha com um curioso orifício na ponta e disparou-a em voo. A seta de conceção astuciosa produziu um silvo distintivo, levando o veado a levantar a cabeça, espantado, no momento preciso em que recebia a ponta afiada na garganta. O rapaz, nómada, órfão de pai e banido da tribo, vivia na floresta com a mãe. Destemido e brutal, era excecionalmente inteligente, com talento para perscrutar as mentes dos outros. Em breve, mataria um dos seus meios-irmãos numa altercação relativa à caça.Não obstante isto se ter passado num dos cantos mais remotos da Terra habitada, um lugar de planícies verdes sem fim, sem edifícios, e sob um céu imenso, este rapaz abalaria e reconfiguraria o mundo. O seu nome era Temujin. Viria a ser conhecido como Gengis Khan.” Andrew Marr (1959) jornalista britânico História do Mundo De mundo , Passado
“Usava uma camisola larga demais, de crepe cor-de-cereja, que surgia negra contra o lençol. Os cabelos soltos, agora penteados, pareciam negros. O rosto, pescoço e braços, sobre as cobertas, eram cinzentos. Depois que os outros saíram ela ficou durante algum tempo com a cabeça escondida sob o lençol. Assim continuou até ouvir fechar-se a porta, até se apagar o som dos passos que desciam a escada, da voz do médico que se exprimia com volubilidade, da respiração ofegante de Miss Reba. Sons que adquiriram, no sombrio saguão, a cor do luar, e desapareceram. Depois Temple pulou da cama e foi até a porta, fazendo correr o trinco. Voltou ao leito e cobriu-se, inclusive a cabeça, ali ficando encolhida até faltar-lhe o ar.Derradeiros reflexos cor-de-açafrão tingiam o teto e a parte das paredes onde viam-se as sombras de paliçada da avenida, que a oeste se erguia contra o céu. Ela viu-os desaparecer, consumidos pelos sucessivos bocejos da cortina. Viu também a última luz condensar-se na parte fronteira do relógio e o mostrador passar, no escuro, de orifício redondo a disco suspenso no nada, no primitivo caos, e mudar depois para bola de cristal que continha, na sua tranquila e misteriosa profundidade, o caos ordenado do mundo complicado e sombrio sobre cujos flancos, marcados de cicatrizes, as velhas feridas rolam vertiginosamente para a frente, mergulhando na escuridão onde se escondem novos desastres.” William Faulkner livro Santuário (romance) Sanctuary De desastre , De mundo , Cor , De cães