“Daqui a quanto tempo é que farei a barba?e os anos a passarem, lentíssimos, sem nenhum pêlo nele, respondam-me que idade temos, uma mão cheia de gaivotas sobre a minha cabeça e os pinheiros de volta, o meu pai a humedecer o pincel, a girá-lo na caixa do sabão, a passeá-lo no lugar do bigode, a tirar uma das navalhas do- Que idade tens?estojo e sangue no lábio, a mãe dele procurou o algodão na lata, pingou-lhe em cima a tintura das feridas- Só fazes asneiras não choreso pai à mesa do jantar, que idade- Cortaste-te?temos, com medo que a mãe contasse, sem se atrever a olhá-la, e a colher a ascender da terrina da sopa, salvando-o- Uma coisa insignificante já passouvontade de saltar-lhe para o colo, beijá-la, chamar-lhe nomes ternos, não há nada melhor no mundo que o alívio, a vida cheia de cores, uma passadeira que se desenrolava à sua frente e havia de percorrer pairando, já passou que felicidade, uma coisa insignificante, não existem palavras mais bonitas, a mãe do meu pai piscou o olho ao meu pai enquanto o pai do meu pai desdobrava o guardanapo num vagar episcopal- De que está a sorrir pai?e uma voz de garoto, vinda das brumas anteriores a mim- Coisas velhas menina” António Lobo Antunes (1942) De vida , De felicidade , De idade , De mundo
“Há no violino — quando não se vê o instrumento e não se pode ligar o que se ouve à sua imagem, coisa que modifica a sonoridade — acentos que lhe são tão comuns com sertas vozes de contralto, que se tem a ilusão de que uma cantora veio juntar-se ao concerto. Erguemos os olhos e só vemos as caixas dos violinos, preciosas como estojos chineses, mas, por um momento, ainda nos iludimos com o enganoso apelo da sereia; às vezes também se julga ouvir um gênio cativo que se debate no fundo da sábia caixa, enfeitiçada e fremente, como um diabo numa pia d’água benta; ou então é no ar que o sentimos como um ser sobrenatural e puro que passasse desenrolando a sua invisível mensagem.” Marcel Proust (1871–1922) Escritor francês No caminho de Swann De idade , Caixa
“Por que precisaríamos de amigos, se nunca tivéssemos necessidade deles? Seriam as criaturas mais inúteis do mundo (…) e se assemelhariam a esses instrumentos agradáveis que permanecem nos estojos, guardando consigo as suas harmonias.” William Shakespeare (1564–1616) dramaturgo e poeta inglês De mundo